Investigação: o quê é realmente o Estado Islâmico – 1ª parte

Autor: Graeme Wood

Essa grande investigação publicada no The Atlantic oferece um esclarecimento sem precedentes sobre os objetivos e os fundamentos ideológicos do Daech. Sustentando a tese segundo a qual a organização se defini essencialmente pela sua leitura literal do Corão, ela desperta muitas reações. Aqui está, em exclusividade, o essencial.
O que é o Estado Islâmico (EI, Daech em árabe)? De onde vem essa organização e quais são suas intenções? A simplicidade das perguntas podem sem enganosas e são raros os dirigentes ocidentais que conhecem as respostas. Em dezembro de 2014, o The New York Times publicou as observações confidencias do general Michael K. Nagata, comandante das operações especias dos Estados Unidos no Oriente Médio, que admitia estar ainda muito longe de compreender a atratividade do Estado Islâmico. “Nós não entendemos essa ideologia”.
A organização apoderou-se de Mossoul, no Iraque em junho de 2014 e já reina sobre uma zona mais vasta que o Reino Unido. Tem na cabeça desde maio de 2010 Abou Bakr Al-Baghdadi, que desde 5 de julho de 2014 subiu ai púlpito da Grande Mesquita Al-Nour, em Mossoul, se fazendo como o primeiro califa em gerações. Ele se fez seguir de um fluxo mundial de jihadistas sem precedentes.
Nossas lacunas sobre o EI são, de uma certa maneira, compreensíveis: a organização fundou um reino isolado e com poucas pessoas. Abou Bakr Al-Baghdadi se exprimiu apenas uma vez em frente das câmeras. Mas seu discurso, assim como os seus incontáveis vídeos e panfletos de propaganda do EI estão acessíveis na internet e os simpatizantes do califado fizeram muito esforço para divulgar seu projeto.
Nós entendemos mal a natureza do EI por dois motivos. Primeiro nós temos a tendência de aplicar a lógica da Al-Qaida à uma organização que claramente a eclipsou. Os simpatizantes do EI com quem eu discuti sempre fazem referência a Oussama Ben Laden sob o título honorifico de “cheikh Oussama”, mas o jihadismo evoluiu desde a era de ouro da Al-Qaida (de 1998 à 2003) e muitos jihadistas desprezam as prioridade dos dirigentes atuais desta organização.
Oussama Ben Laden considerava o terrorismo como um prólogo ao califado, que ele não esperava conhecer em vida. Sua organização era informal, constituída de uma rede difusa de células autônomas. O EI, ao contrário, necessita de um território para assentar sua legitimidade, assim como uma estrutura hierárquica para reinar.
Em segundo lugar, somos induzidos ao erro por causa de uma campanha bem intencionada, mas de má-fé visando a negar a natureza religiosa medieval do EI. Peter Bergen, que produziu a primeira entrevista com Ben Laden em 1997, intitulou sua primeira obra Guerra Santa, multinacional (éd. Gallimard, 2002), especialmente para afirmar que o líder da Al-Qaida era um produto do mundo laico moderno.
Ben Laden organizou o terror na forma de uma empresa do tipo que tem franchises. Ele exigia concessões políticas precisas, como a retiradas de tropas americanas da Arábia Saudita. No último dia de sua vida, Mohamed Atta (um dos responsáveis dos atentados de 11 de setembro de 2001) fez compras no Walmart e jantou no Pizza Hut.

Maomé à letra

É tentador repetir essa observação – os jihadistas são produto do mundo laico moderno, com preocupações políticas de seu tempo, mas disfarçados em hábitos religiosos – aplicando ao EI. Portanto, muitas de suas ações paressem sem sentido se não as vemos sob a luz de uma determinação sincera de fazer voltar a civilização à um regime jurídico do século VII e fazer advir, finalmente, o apocalipse.
A verdade é que o EI é islâmico. Muito islâmico. Mesmo se o movimento atraiu psicopatas e aventureiros, muitos vindos de populações menos favorecidas do Oriente Médio e da Europa, a religião que pregam os mais fervorosos partidários do EI é vinda de uma interpretação coerente e até mesmo instruída do islã.
Quase cada grande decisão ou lei que se proclama no EI obedece ao que se chama “metodologia profética”, que implica em seguir a profecia e o exemplo de Maomé à letra. Os muçulmanos pode rejeitas o EI, como fazem a maioria esmagadora deles. Todavia, achar que ela não é uma organização religiosa milenarista cuja teologia deve ser compreendida para ser combatida, já levou os EUA a subestimar a organização e a sustentar planos mal pensados para fazê-los parar.
Nós devemos aprender a conhecer melhor a genealogia intelectual do EI se nós queremos reagir, não de uma maneira que lhes faça ainda mais forte, mas sim de uma forma que eles se imolem eles mesmos em um excesso de zelo.
Devoção
Em novembro de 2014, o EI transmitiu um vídeo promocional traçando suas origens a Ben Laden. O filme mencionava Abou Moussab Al-Zarqaoui, o violento dirigente da Al-Qaida no Iraque em 2003 até sua morte em 2006, fazendo dele um mentor mais direto. Ele citava dois outros chefes de guerrilhas que precederam Abou Bakr Al-Baghdadi, o califa. Nenhuma menção, ao contrário, ao sucessor de Ben Laden e dirigente atual da Al-Qaida, o cirurgião oftalmologista egípcio Ayman Al-Zawahiri.
Al-Zawahiri não jurou submissão a Abou Bakh Al-Baghdadi e é cada vez mais odiado por seus colegas jihadistas. Seu isolamento é reforçado pela sua falta de carisma. Mas a ruptura entre Al-Qaida e o EI começou há muito tempo.
Uma outra figura importante em desgraça hoje é Abou Muhammad Al-Maqdisi, um religioso jordaniano de 55 anos que é um dos grandes arquitetos intelectuais da Al-Qaida. Sobre quase todas as questões de doutrina, Al-Maqdisi e o EI estão em desacordo. Eles são estreitamente ligados pela asa jihadista de um ramo sunita chamada de salafismo, que vem da expressão árabe Al salih, “os piedosos antecessores”. Esses “antecessores” são o próprio Profeta (Maomé) e seus primeiros discípulos que os salafistas honram e imitam.
Al-Maqdisi foi o mentor do Al-Zarqaoui, que foi ao Iraque com seus conselhos na cabeça. Com o tempo, o aluno ultrapassou seu mestre, que acabou criticando-o. A contenda deles consistia sobre os espetáculos sangrentos – e, um ponto de vista doutrinário, seu ódio dos muçulmanos não salafistas, que ia até excomungá-los e matá-los.
No Islã, o takfir, ou excomunhão, é uma prática perigosa de um ponto de vista teológico. Se o acusador está errado, então ele mesmo é um apóstata, pois ele se tornou culpado de uma falsa acusação – um ato punido de morte. E portanto, Abou Moussab Al-Zarqaoui aumentou, imprudentemente, a lista de comportamentos que podem tornar os muçulmanos infiéis.
Abou Muhammad Al-Maqdisi escreveu ao seu antigo aluno que ele deveria ser mais prudente e não “emitir longas proclamações de takfir” ou “declarar pessoas culpáveis de apostasia em razão de seus pecados”. A distinção entre apóstata e pecador é um dos desacordos entre Al-Qaida e o EI.
Negar a santidade do Corão ou o profeta Maomé é claramente uma apostasia. Mas Abou Moussab Al-Zarqaoui e a organização que ele criou estima que muitos atos podem justificar a exclusão de um muçulmano do islã, como vender bebidas alcoólicas e drogas, usar roupas ocidentais, raspar a barba ou ainda votar em uma eleição.
Ser chiita é também um motivo de exclusão, pois o EI estima que o chiismo é uma inovação, ora, inovar em relação ao Corão é o mesmo que negar sua perfeição inicial. Assim, os 200 milhões de chiitas são ameaçados de morte. A mesma coisa vale para todos os chefes de Estado de todos os países muçulmanos, que elevaram os direitos humanos acima da charia ao se candidatarem nas eleições ou aplicando leis que não vêm de Deus. Conforme a sua doutrina sobre a excomunhão, o EI se compromete a purificar o mundo exterminando grandes grupos de pessoas. As publicações nas redes sociais levam a pensar que as execuções individuais acontecem mais ou menos continuamente e que as execuções em massa são organizadas com algumas semanas de intervalo. Os “apóstatas” muçulmanos são as vítimas mais numerosas. Mas parece, ao contrário que o cristãos que não resistem ao novo poder escapam a uma execução automática. Abou Bakr Al-Baghdadi deixa-os viver desde que eles paguem um imposto especial, chamado jizya, e que eles se submetem.
Retorno a um islã “ancião”
Muitos séculos se passaram desde o fim das guerras de religião na Europa. Desde então, os homens deixaram de morrer em massa por obscuras diferenças teológicas. É, talvez, por essa razão que os ocidentais acolheram a teologia e as práticas do EI com tanta incredulidade e com tal negação.
Muitas organizações muçulmanas tradicionais foram mais longe ao afirmar que o EI é “contrário ao islã”. Porém, os muçulmanos que empregam essa expressão estão muitas vezes “envergonhados e politicamente corretos, com uma visão ingênua da religião deles” e negligenciam “o que ela foi, historicamente e juridicamente”, sugere Bernard Haykel, pesquisador em Princeton de origem libanesa e experto de primeira linha sobre a teologia do EI.
Todos os universitários a quem eu fiz perguntas sobre a ideologia do EI me redirecionaram para Bernard Haykel. Segundo ele, o nível do EI é profundamente impregnado de ardor religioso. As citações do Corão são omnipresentes. Para ele, o argumento segundo o qual o EI deformou os textos do Corão é grotesco e não se pode sustentar sem ignorância voluntária. As pessoas querem absolver o islã, explica, de onde vem o mantra que “o islã é uma religião pacífica”. Como se existisse um islã! O que conta, é o que fazem os muçulmanos e como eles interpretam seus textos. Os membros do EI têm a mesma legitimidade que quaisquer outros.”
Todo muçulmano reconhece que as primeiras conquistas de Maomé foram caóticas e que as leis de guerra transmitidas pelo Corão e as recitações sobre o reinado do Profeta foram adaptados para uma época tribulada e violenta. Bernard Haykel estima que os combatentes do EI representam um autêntico retorno ao islã antigo e que eles reproduzem fielmente suas práticas de guerra. Isso engloba um certo número de práticas que os muçulmanos modernos preferem não reconhecer como fazendo parte de seus textos sagrados.
“A escravidão, a crucifixão e as decapitações não são outros elementos senão os que (jihadistas) loucos selecionaram dentro da tradição medieval”, afirma Bernard Haykel. Os combatentes do EI estão plenamente dentro da tradição medieval e eles as transpuseram integralmente para a época contemporânea”.
O Corão especifica que a crucifixão é uma das únicas sanções permitidas contra os inimigos do islã. A taxa imposta aos cristãos é claramente legitimada pela surata At-Tawbah, nono capítulo do Corão, que intima aos muçulmanos a combater os cristãos e os judeus “até que eles paguem a capitação (o imposto) com as próprias mãos, sendo assim humilhados”.
Quando o EI começou a reduzir pessoas à escravidão, até alguns dos seus simpatizantes relutaram. Todavia, o califado continuou praticando a sujeição e a crucifixão. “nós conquistaremos a Roma de vocês, queimaremos as cruzes e sujeitaremos suas mulheres, prometeu Mohamed Adnani, porta-voz do EI, em uma de suas mensagens ao Ocidente. Se nós não o fizermos, nossos filhos e nossos netos farão. E eles venderão seus filhos no mercado de escravos”
Território
Em novembro de 2014, eu estive na Austrália para me encontrar com Musa Cerantonio, um homem de uns 30 anos identificado como uma das duas mais importantes “novas autoridades espirituais” guiando estrangeiros a se juntarem ao EI. Durante três anos ele foi televangelista na Iqraa TV, no Cairo, mas ele se foi quando o canal contestou seus frequentes apelos à criação de um califado. Agora, ele prega no Facebook e no Twitter.
Musa Cerantonio, um homem grande e com ar de estudioso, conta que ele empalideceu quando viu vídeos de decapitações. Ele não gosta de ver violência, mesmo se os simpatizantes do EI são obrigados a apoiar. Ele tem uma barba farta que lembra os fãs do Senhor dos Anéis, e sua obcessão pela ideologia apocalíptica do islã era-me familiar.
Em junho de 2014, Musa Cerantonio e sua esposa tentaram emigrar – ele não disse para onde (“é ilegal ir para a Síria”, disse ele desconfiado) – mas eles foram presos no caminho, nas Filipinas, e expulsos para a Austrália. Na Austrália, tentar se juntar ao EI ou ir para o seu território é uma infração; por isso, o governo confiscou o passaporte de Musa Cerantonio. Todavia até agora ele está livre. É um idealista sem filiação oficial, porém sua palavra tem autoridade junto a outros jihadistas no que tange a doutrina do EI.
Nós marcamos uma hora para almoçar no Footscray, uma periferia multicultural e muito populosa de Melbourne. Musa Cerantonio cresceu ali, em uma família italo-irlandesa.
Ele me descreve a alegria quando Abou Bahr Al-Baghdadi foi declarado califa, em 29 de junho de 2014, assim como a atração que o Iraque e a Síria exerceram sobre ele e seus amigos. “Eu estava em um hotel (nas Filipinas) e vi a declaração pela televisão. Eu estava espantado e me dizia “o que é que eu estou fazendo encurralado nesse maldito quarto?”
O último califado histórico é o Império Otomano, que teve sua era de ouro no século XVI, antes de sofrer um longo declínio até seu desaparecimento em 1924. Mas Musa Cerantonio, assim como muitos simpatizantes do EI, colocam em dúvida a legitimidade daquele califado, pois ele não aplicava integralmente a lei islâmica que requer o apedrejamento, escravidão e amputação, e porque os califas não descendiam da tribo do Profeta, os Quraychites.
Abou Bakr Al-Baghdadi insistiu muito sobre a importância do califado no sermão que ele pronunciou em Mossoul. Ele explicou que fazer nascer a instituição do califado – que não existiu nos últimos mil anos – era uma obrigação comum. Ele e seus fiéis “se apressaram a declarar o califado e nomear um imã” à cabeça, declarou ele. É o dever dos muçulmanos, um dever que foi negligenciado por séculos… Os muçulmanos cometem um pecado em esquecer o que eles deveriam constantemente procurar estabelecer.
Como Oussama Ben Laden antes dele, Abou Bakh Al-Baghdadi se exprime com ênfase, utilizando numerosas alusões corânicas e demostrando uma grande habilidade da retórica clássica. Mas, ao contrário de Ben Laden e dos falsos califas do Império Otomano, ele é um Quraychite.
O califado, me explicou Musa Cerantonio, não é unicamente uma entidade política, mas igualmente um veículo de salvação. A propaganda do EI redireciona regularmente os juramentos de bay’a (submissão) das outras organizações jihadistas. Musa Cerantonio citou um provérbio atribuído ao Profeta segundo o qual morrer sem ter feito voto de submissão é o mesmo que morrer jahil (ignorante) e, portanto, “morrer fora da lei”.
Para ser califa, é necessária preencher condições precisas, segundo o direito sunita: ser um homem muçulmano adulto descendente de Quraych, manifestar probidade moral, integridade física e mental, e provar ser um ‘amr, quer dizer autoridade. Esse último critério, segundo Musa Cerantonio, é o mais difícil preencher, e ele exige que o califado tenha um território sobre o qual fará reinar a lei islâmica.
Depois desse sermão de Abou Bahr Al-Baghdadi, os jihadistas começaram a afluir cotidianamente na Síria, mais motivados do que nunca. Jülgen Todenhöfer, autor alemão e antiga figura política que chegou nos territórios controlados pelo EI em dezembro de 2014, declarou ter visto afluir, em dois dias somente, 100 combatentes ao posto de recrutamento instalado na fronteira turca.
Em Londres, uma semana antes do meu almoço com Musa Cerantonio, eu me encontrei com três antigos membros de um grupo islâmico proibido chamado Al-Muhajiroun (Os emigrados): Anjem Choudary, Abu Baraa e Abdul Muhid. Todos os três desejaram emigrar para se juntar ao EI, mas as autoridades confiscaram seus passaportes. Como Musa Cerantonio, eles consideram o califado como o único governo legítimo. Nas nossas conversas, o principal objetivo deles era de me explicar o quê representa o EI e em quê sua política reflete a lei de Deus.
Anjem Choudary, 48 anos, é o antigo chefe do grupo. Ele aparece sempre nas emissões da TV a cabo, pois ele é uma das únicas pessoas que os produtores podem convidar e que eles estão certos de que ele vai defender o EI com veemência – até que cortem seu microfone. No Reino Unido, ele tem uma reputação de um odioso fanfarrão, mas ele e seus discípulos creem sinceramente no EI e eles difundem sua doutrina. Anjem Choudary e consorts estão muito presentes sobre os fios do Twitter dos habitantes dos territórios controlados pelo EI e Abou Baraa administra um canal You Tube para responder questões sobre a charia.

Continua na parte 2.

 

Traduzido do francês por Celso Fonseca em Courrier International

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